Imagine se você, aos dezenove anos, tivesse que fazer uma escolha que afetasse a vida de centenas de pessoas – ou melhor, de um reino inteiro? É exatamente isso o que aconteceu com a jovem Kelsea, protagonista do livro A Rainha de Tearling, novo lançamento da Suma das Letras.
Kelsea é uma jovem que viveu a vida inteira num chalé na floresta, cercada de livros e nunca podendo sair de casa. Ela é criada sob o pulso firme de sua mãe e o carinho de seu pai, até o dia em que, ao completar dezenove anos, a Guarda da Rainha bate em sua porta: ela era a nova Rainha de Tearling, descendente direta e única de sua antecessora, a falecida Elyssa, e precisava assumir seu direito ao trono.
A Rainha de Tearling se passa num período pós-modernidade, em que um líder utópico teria liderado um povo para a descoberta de novas terras, período caracterizado como “A Travessia”. Esse evento não é explicado com riqueza de detalhes, mas é constantemente trazido durante a leitura, para situar o leitor e explicar a forma como funcionam as coisas. As pessoas que vivem nesse reino sabem da existência de computadores e máquinas, conhecem escritores como J. K. Rowling e Tolkien, mas ao mesmo tempo possuem altos níveis de analfabetismo e não têm qualquer conhecimento médico além de ervas. Olhando por cima, a ideia que se passa é o de um período medieval ou até anterior, mas o constante lembrete do período “Pré-Travessia” mostra que na verdade é como se o mundo tivesse sido reiniciado desde o início dos tempos, mas somente depois dos habitantes terem conhecido tudo que temos hoje.
Kelsea é uma personagem rica e interessante. Poucos teriam a força dela de cuidar de um reino em ruínas, ainda mais aos dezenove anos. Um ponto interessante é que a protagonista vai contra os padrões do “esperado” a alguém da sua idade: ela tem um reino inteiro com que se preocupar, das montanhas ao norte até o deserto ao sul e a fronteira ao leste, passando por planícies e rios, desde políticas públicas que precisa adotar em prol da população até evitar uma guerra com o reino inimigo, comandado pela Rainha Vermelha.
Não apenas Kelsea é interessante, mas a maior parte das mulheres recebem mais destaque que os homens em A Rainha de Tearling. As regentes anteriores à protagonista são tão importantes quanto ela, e são sempre trazidas à tona durante a leitura. As mulheres retratadas são bastante diversas: de estudiosas como a mãe adotiva de Kelsea, a líderes fortes e assustadoras como a Rainha Vermelha, ou até mesmo as mulheres que sofreram abusos e continuam firmes e fortes na trama, vivendo um dia de cada vez. Assuntos como aborto e violência doméstica são exibidos na leitura, tornando a obra bastante realista. São práticas tão presentes no nosso dia-a-dia quanto no livro, mas que a maioria da sociedade finge que não vê ou não existe.
Os homens narrados também são importantes, mas, num revés irônico, representam apenas papéis secundários e de apoio, como normalmente acontece com as mulheres em livros do gênero fantasia. Eles têm um papel de auxiliares, conselheiros ou guardas, mas as decisões são tomadas pela Rainha.
Outro ponto interessante é a humanização dos pais. Kelsea passa por esse processo, não apenas com seus pais adotivos, mas com sua mãe biológica e antiga regente. É passando pelas provações que a protagonista percebe o quão humano eles eram, o que tiveram que sacrificar para continuar em frente e como são tão fadados a erros como qualquer outra pessoa. Isso só serve para somar ao processo de amadurecimento no qual ela é exposta: de uma menina que vivia na floresta a uma rainha aos dezenove anos cercada de pessoas que ela não sabe se são confiáveis.
Outro ponto é exatamente esse, o processo de amadurecimento de Kelsea. No início da leitura de A Rainha de Tearling ela não passa de uma jovem perdida, mas que precisa se adequar a esse novo papel que lhe é imposto. Ela é uma personagem descrita de forma bastante comum, e não se enquadra ao estereótipo de “personagem feminina bela e formosa”: está acima do peso, tem um rosto redondo e cabelo castanho. Kelsea precisa lutar pela sua voz e para que seja ouvida e respeitada por todos, que apenas a veem como um estorvo ou como uma criança mimada e despreparada.
A Rainha de Tearling é um romance de fantasia bastante rico, com mensagens em seu texto que são atuais sob todos os aspectos: a importância da educação, o prazer da leitura, o valor da compaixão, da empatia e da justiça. É uma obra política, cuja crítica é atual: uma boa sociedade é aquela cujos governantes se preocupam com o bem-estar de seu povo, e não visam ao interesse próprio; a prioridade de um líder deve ser especialmente o seu povo, e não seu bolso; e como a história tem a cômica capacidade de se repetir, especialmente os erros.
A autora Erika Johansen é advogada e escritora e A Rainha de Tearling é sua primeira obra escrita. Ela aborda desde assuntos como prostituição e violência doméstica a questionar os deveres e as qualidades necessárias de um líder.
Fonte:siteladom