Sustentabilidade

Executivos contam como foi assumir a homossexualidade em uma grande empresa

Pesquisa recém-publicada aponta que 66% dos profissionais LGBTQ + acreditam que assumir sua identidade pode ferir a carreira.

A primeira fase de um longo processo de seleção. A recrutadora, como é de praxe, quer saber um pouco da vida pessoal da candidata.

– Você é casada?
– Sim.
– E qual o nome do seu esposo?
– Da minha esposa? Adriana.

O diálogo aconteceu há três anos, quando Fernanda Chillotti, hoje head de RH da Messer Gases, começava o processo para ingressar na empresa. Lésbica e candomblecista, a executiva tem entre suas responsabilidades levar a bandeira da diversidade para toda a organização e fazer com que outros funcionários LGBTQ+ se sintam tão confortáveis quanto ela para assumir quem são.

Fernanda (Foto: Flor Azul Fotografia)

FERNANDA CHILLOTTI, HEAD DE RH DA MESSER GASES, É LÉSBICA E LEVA A BANDEIRA DA DIVERSIDADE PARA DENTRO DA EMPRESA EM TODA A AMÉRICA LATINA (FOTO: FLOR AZUL FOTOGRAFIA)

A tarefa não é simples. Pesquisa recém-publicada pela Love Mondaysaponta que 66% dos profissionais LGBTQ+ acreditam que assumir sua identidade pode ferir a carreira, um receio que faz parte da realidade até mesmo daqueles que já saíram do armário. É o caso de Fernando Rosa, executivo sênior de desenvolvimento de negócios da 3M do Brasil. Mesmo após assumir-se gay no trabalho e fora dele, Fernando segue discreto e evita tocar no assunto quando o papo é com clientes, por exemplo. Afinal, neste caso você lida com pessoas das mais diversas ideologias.

“Eu não fico espalhando para todas as pessoas. Eu respondo ao que me perguntam, mas ainda busco manter uma vida bastante reservada”, diz o profissional que, antes de se assumir, não tirava fotos ao lado do namorado durante as férias, para evitar perguntas no trabalho.

Hoje, Fernando é casado. Contou com a presença da chefe no casamento, pode incluir o marido no plano de saúde e, como o companheiro mora no sul do país, a 450 km de distância, teve ajuda da empresa para ampliar sua área de atuação. Agora, trabalha alguns dias em Curitiba, perto dele. 

A mudança veio por meio da construção de um ambiente de trabalho seguro. Políticas internas de inclusão e valorização da diversidade fizeram com que Fernando se sentisse tranquilo para assumir quem era dentro da empresa. Primeiro para os mais próximos, depois para o RH — que, junto com ele, desenvolveu ações que vão desde comunicações institucionais, até rodas de conversa para conscientização e grupos de apoio para funcionários LGBTQ+.

“Quando você entra no trabalho e tem uma bandeira LGBTQ+ hasteada, uma faixa na porta promovendo um ambiente mais inclusivo, diretores usando um cordão com arco-íris no pescoço, você se sente muito mais seguro”, afirma Fernando, que hoje não aceitaria um emprego em uma empresa que não tivesse a mesma abertura.Uma questão de desempenho

Não foi apenas o Fernando que ganhou ao se assumir, mas a empresa também. Segundo uma pesquisa da consultoria McKinsey, publicada em 2018, organizações que se preocupam com a inclusão dentro de casa podem apresentar resultados financeiros até 21% melhores. Não apenas porque diversidade de pessoas traz diversidades de ideias, mas também porque ao se sentir livre para ser quem é o profissional costuma ter um desempenho superior.

“A melhor coisa que há é sermos transparente de todas as formas. Poder compartilhar nossas alegrias e tristezas. Quando você se sente confortável para ter uma vida normal, é como tirar um peso das costas”, diz Fernando. “A minha chefe, que trabalhou comigo antes e depois, já apontou como, de forma geral, os profissionais que se assumem se tornam muito mais criativos, tranquilos e menos ansiosos. Eu sentia isso, mas é muito legal ver que isso transparece para as pessoas”. 

Há 20 anos, ainda quando trabalhava em outra empresa, Fernanda Chillotti sentiu na pele a mesma evolução. “[ao me assumir para uma amiga]passei a ter um desempenho superior, porque eu não precisava modelar o meu discurso o todo tempo. Percebi que quando eu me escondia, não dava o melhor de mim”, afirma a diretora que, desde então, comprometeu-se a abrir o jogo em todos os lugares por onde passou.
 Representatividade importa

Ter alguém que, assumidamente, faz parte de uma minoria representativa em cargos de direção pode parecer apenas um detalhe para parte dos funcionários heterossexuais, mas para uma silenciosa massa de funcionários LGBT+ costuma fazer bastante diferença, trazendo não apenas segurança, mas também apoio e inspiração.

“A gente acaba se tornando referência. Conheci um jovem aprendiz que não se assumiu ainda e veio me perguntar como foi o meu processo. Disse que admirava muito a minha trajetória e queria saber quais conselhos eu daria a ele”, afirma Fernando. O gerente garantiu ao jovem que, se continuasse na 3M, teria todo o apoio necessário. Ao mesmo tempo, o aconselhou a levar todo o tempo que achasse necessário para tomar essa decisão. “A única coisa que eu podia falar é que tinha valido a pena”. 

Fernanda também não se arrepende de deixar tudo às claras. “Se eu não puder ser quem eu sou, o quanto eu vou aguentar viver de maneira saudável? Quanto tempo eu vou sustentar uma mentira? Não dá. Eu tenho que ser quem eu sou”, afirma a diretora que hoje vê que se assumir parte da comunidade LGBT+ é algo que vai muito além de sua história pessoal. “Eu sento em uma cadeira privilegiada. Se eu não me valer desse papel para trazer à tona voz dos demais que se sentem como minoria, não estou cumprindo com a minha função aqui na Terra”.

O estudo desenvolvido pela  McKinsey reforça a fala da profissional. Segundo a pesquisa, só ao agir ativamente na inclusão de diversidade em cargos de liderança é possível garantir que as mudanças sejam de fato espalhadas por toda a empresa.Direitos

Neste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passe a ser considerada um crime. A conduta será punida pela Lei de Racismo (7716/89), que já previa crimes de discriminação ou preconceito por “raça, cor, etnia, religião e procedência nacional”. A decisão é uma grande vitória para a população LGBTQ+ e à época teve grande repercussão. Mas, dentro das empresas, alguns direitos também vêm sendo conquistados sem tantos holofotes.

Ao se casar, por exemplo, Fernando não enfrentou problemas para incluir seu marido no plano de saúde fornecido pela empresa. O mesmo acontece na companhia de Fernanda, na qual ela, como chefe de RH, ainda faz questão de buscar soluções para casos que nem sequer aconteceram, como os de útero solidário.

“Eu sei que tenho casais homossexuais na minha organização. E se eles quiserem ter filhos de um útero solidário? Eles não poderão ter? O plano de saúde não irá arcar com os gastos do parto”.Questões polêmicas que já estão sendo avaliadas pela equipe de Fernanda com seus prestadores de serviço. Construção diária

Fernando Rosa (Foto: Divulgação)

FERNANDO ROSA, EXECUTIVO SÊNIOR DE DESENVOLVIMENTO DE NEGÓCIOS DA 3M DO BRASIL, NÃO TRABALHARIA EM UMA EMPRESA QUE NÃO TIVESSE A DIVERSIDADE COMO PRIORIDADE  (FOTO: DIVULGAÇÃO)

Para além da luta por direitos, assumir-se LGBTQ é um exercício de resistência. Segundo a pesquisa publicada pela Love Mondays, quando questionados sobre preconceito, por exemplo, 35% dos funcionários LGBTQ+ declararam que já sofreram algum tipo de discriminação no trabalho por causa de sua orientação sexual ou de gênero. O número chega a 40% no caso dos profissionais trans.

Com Fernando, não foi e não é diferente. Se a empresa lhe deu segurança de que seu carreira seguiria o curso natural independentemente de sua orientação sexual, o temor do preconceito persiste. “Medo do desrespeito eu tinha e tenho até hoje, por isso vivo uma vida bem discreta”, afirma ao lembrar das brincadeiras e piadas que já ouviu. Comentários que, no começo, relevava. Mas, com o tempo, entendeu que não precisava aturar.

O mesmo aconteceu com Fernanda, que embora garanta que nunca sofreu qualquer tipo de situação constrangedora na atual empresa, não passou ilesa nestes 20 anos de carreira. “Não pontuar é consentir e não facilita o processo de construção”, afirma a diretora que não acredita em lutar, mas sim em construir.

“Eu não estou em uma guerra. Ao final de uma guerra, alguém vai perder. Eu estou em um  processo de construção para que no final todo mundo possa desfrutar dessa casa que a gente está construindo como sociedade”, diz, mas sem deixar de destacar o esforço que ainda é preciso ter. “É muita paciência, é muita perseverança, é muita resistência”.

Época Negócios

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo